Embora tenha apenas 32 anos de existência, o Tribunal de Justiça do Amapá (TJAP) é o guardião de vasto acervo documental que remonta a meados do século XIX. O acervo, que integra o arquivo de guarda permanente, documenta diversas fases do Poder Judiciário no território amapaense, ligado inicialmente ao Tribunal de Relação do Maranhão (1813 -1874), ao Tribunal de Relação do Pará (1874-1943) e, por fim, ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (1943-1991) – ao assumir a jurisdição plena do Estado (em 05 de outubro de 1991) o TJAP recebeu aproximadamente 1000 caixas-arquivo de processos judiciais, documentos administrativos e cartoriais. Dentro do acervo já catalogado, o documento mais antigo identificado até o momento é o Livro de Notas nº 1 do Juiz de Paz da Vila de Mazagão. Datado de 1841, época em que Mazagão havia se tornado vila e Termo da recém-criada Comarca de Macapá, o livro notarial traz referências e anotações ainda mais antigas, da época em que era Freguesia de Regeneração.
“Pode-se dizer que é bastante raro, já que poucos documentos do período sobreviveram ao tempo ou encontram-se disponíveis para pesquisas no Amapá”, afirma o museólogo Michel Ferraz, chefe da Seção de Memória Institucional do TJAP e membro da Comissão Permanente de Gestão de Memória da Justiça do Amapá.
Segundo o servidor, o livro de notas em questão foi feito manualmente com bloco de papel costurado com fio de algodão. “Ele apresenta características típicas dos documentos do séc. XIX, como a escrita com tinta ferrogálica e as folhas com marca d'água. Ao colocá-la contra a luz é possível visualizar um brasão coroado encimado das iniciais GM”, detalhou o museólogo.
Ele descreve, ainda, que colado à capa de papel rígido encontra-se a seguinte nota:
“Livro de Notas nº 1 de 1841. Certifico que não estando nominados estes livros, dei a este o nº 1 de conformidade com a sua data e dou fé. O 1º tabelião interino Vicente Manoel Rodrigues Junior. Mazagão, 9 de Fevereiro de 1914.”
“Constatamos a ausência das páginas de 1 a 6, bem como o termo de abertura do livro, estando numeradas as páginas 7 a 110 e preenchidas até a página 104. Todas as suas folhas são numeradas e rubricadas com a assinatura “Barreto”, feita pelo Juiz de Paz Lázaro Vallentte Barretto”, constatou Michel.
Em relação ao seu teor, o livro de notas conta com 70 registros (três deles incompletos). “O primeiro registro foi anotado antes de 16 de janeiro de 1841 e o último em 03 de março de 1846”, observou. Os termos são de conteúdos diversos, distribuídos conforme tabela a seguir:
Tipo de Registro |
Quantitativo |
Escritura de venda |
35 |
Escritura de alforria |
10 |
Termo de aduação |
9 |
Registro de testamento |
3 |
Termo de doação |
3 |
Termo de ajuste |
3 |
Escritura de dívida e obrigação |
2 |
Termo de fiança |
1 |
Termo de troca |
1 |
Termo de comparecimento |
1 |
Termo de conciliação |
1 |
Procuração |
1 |
De acordo com o historiador Marcelo Jacques, servidor do TJAP e também membro da Comissão Permanente de Gestão de Memória da Justiça do Amapá, “a importância do livro enquanto fonte histórica e informacional é inegável e trata-se de um documento precioso, não só pela idade, mas também pelos registros nele contidos”.
Marcelo observa que em relação às escrituras de vendas de imóveis, presentes em maior quantidade no livro, é possível perceber um número relativamente elevado de transações, já que se tratava de um vilarejo pequeno. “Nesses termos é possível mensurar valores, verificar formas de pagamento e ter uma noção da vizinhança do imóvel vendido, já que se menciona sua localização e os confrontantes”, explicou. “Uma leitura mais atenta e uma pesquisa mais aprofundada possibilitariam, por exemplo, recriar a partir de cartografia, a disposição dos imóveis do vilarejo naquele período”, acrescentou o servidor.
“No caso dos termos de alforria, percebemos que muitos escravizados compravam sua própria liberdade, demonstrando seu ativismo”, ponderou. “Outros eram mencionados em testamentos, mas só estariam alforriados depois da morte de seus senhores e, desde que lhes mandassem celebrar diversas missas”, acrescentou.
No caso das pessoas citadas – juiz de paz, escrivão, partes e testemunhas – é possível identificar nomes de descendentes próximos das famílias trazidas da Mazagão marroquina para a Mazagão amazônica, ressaltou Marcelo Jacques. “Outro aspecto social que pode ser observado é que as mulheres não assinavam o livro, seja por não serem letradas ou pela obrigatoriedade de serem legalmente representadas pelos homens”, lembrou o historiador, destacando características das relações sociais do período.
Em relação à sua incorporação ao acervo do TJAP, é provável que o Livro de Notas nº 1 tenha sido separado, junto com outros documentos antigos, nos primeiros anos de funcionamento do TJAP, sob gestão do desembargador Dôglas Evangelista, hoje aposentado, para compor o acervo do Museu Histórico do Poder Judiciário (Resolução nº 010/1991).
Segundo Michel Ferraz o documento está no TJAP bastante tempo, mas nunca havia sido lido, estudado e catalogado. “O conteúdo foi verificado a partir do estudo e leitura paleográfica feitos pela Seção de Memória Institucional do TJAP”, registrou o museólogo.
Interessados em conhecer um pouco mais sobre o documento, podem vê-lo em exposição no Centro de Memória do TJAP (na entrada do Palácio da Justiça – Sede do TJAP, na Rua General Rondon, 1295, Centro, Macapá-AP). Também é possível agendar consulta a este e outros documentos do arquivo permanente mediante solicitação formal.
De acordo com Michel Ferraz, este acervo, que está em processo de catalogação e tratamento técnico iniciado recentemente, é de grande valor histórico-cultural por guardar informações relevantes que ajudam a conhecer a sociedade amapaense do passado e a entender a presença do Judiciário frente às demandas apresentadas.
“A intenção é que, em breve, parte desse acervo documental já esteja devidamente preparado para consulta pública, tanto física quanto virtual”, ressaltou o museólogo. “Nesse sentido, o TJAP já iniciou o processo de instalação de uma plataforma virtual de difusão arquivística (AtoM), e do Repositório Digital Cofiável (RDC-Arq)”, concluiu o servidor.